"A prestação do patrocínio forense não era a mesma coisa que o fabrico de bolas de Berlim ou a produção de alheiras"
António Marinho Pinto in "Um combate desigual", Verso de Kapa, 2010, p.46

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Porque é que o Exame de Acesso é ilegal? - Parte I

Olha o gajo,


Então Marinho, tudo bem? Olha lá, estás de férias? Espero que sim porque há já muito tempo que não te vejo nas notícias e começo a temer pelo teu bem-estar.

Pois é, chegou a altura de referir alguns dos argumentos jurídicos que levam a generalidade do mundo formado em Direito, à excepção de ti e de alguns dos teus amigos, a concluir que o Exame de Acesso é ilegal. Bem sei que o meu contributo para este debate tratá pouco de novo, uma vez que não direi nada que não tenha já sido dito por ilustres juristas como Luís de Menezes Leitão, Marcelo Rebelo de Sousa, Jorge Miranda, Cândido da Agra, Teresa Beleza, Luís Fábrica, Agostinho Guedes, Heinrich Hörster e ainda pelo Tribunal Administrativo de Lisboa e pelo Tribunal Central Administrativo Sul (acórdão disponível aqui), contudo, creio que não custa tentar.

Aproveito, desde já, para limitar o tema desta carta à questão da ilegalidade do Exame, abstendo-me de avançar, para já, pelas questões da inconstitucionalidade.

Após a leitura deste teu texto pude concluir que te baseias em dois argumentos para sustentar a legalidade do Exame:

1 - O da interpretação da lei: "Ora, de acordo com o artigo 9º do Código Civil, a interpretação da lei não deve cingir-se à sua letra, mas sim reconstituir, a partir do texto legal, o pensamento do legislador, tendo sobretudo em conta as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. Ou seja, a lei nunca deve ser aplicada de forma literal e mecanicista."

2 - O da permissão legislativa atribuída pelo art. 184º nº2 do Estatuto da Ordem dos Advogados para regulamentar o acesso ao estágio: "Por outro lado, diz a norma do artigo 184º, nº 2 do EOA que o acesso ao estágio se faz nos termos dos regulamentos aprovados em conselho geral. Foi, pois, com base nesta norma que o actual Conselho Geral da OA elaborou um regulamento nos termos do qual o acesso ao estágio dos licenciados pós-Bolonha se faz através de um exame nacional que só admita os que mostrarem possuir os conhecimentos adequados."

Nesta carta limitar-me-ei a abordar o teu primeiro argumento. Em parte para não me alongar em demasia, mas principalmente porque te responderei com base nos conhecimentos que adquiri na disciplina de "Introdução ao Estudo do Direito", disciplina essa que me foi leccionada quando eu ainda era um jovem estudante de Direito não integrado no Processo de Bolonha. Portanto, nesta carta vou responder-te com base nos meus conhecimentos pré-Bolonha e na próxima com base nos meus conhecimentos pós-Bolonha.

A norma que te propões interpretar é a seguinte:

Artigo 187.º
Inscrição

Podem requerer a sua inscrição como advogados estagiários os licenciados em Direito por cursos universitários nacionais ou estrangeiros oficialmente reconhecidos ou equiparados.


Dizes tu que quando o legislador, no longínquo ano de 2005, decidiu colocar como requisito necessário e suficiente de acesso ao estágio a titularidade de uma licenciatura em Direito, o que ele queria na verdade dizer era uma "licenciatura em Direito de 5 anos". Ou, no mínimo, dizes que o legislador se estava a referir a uma verdadeira licenciatura e não a um bacharelato "travestido" de licenciatura.
Dizes-me então que o legislador se esqueceu de corrigir essa exigência, apesar de ter alterado o EOA em 2008 e em 2010, já depois da entrada em vigor do processo de Bolonha? Sim?
Provavelmente dir-me-ás que as alterações que aí foram feitas tinham outros objectivos e que nem sequer se focaram nessa questão. Então pergunto-te o seguinte: porque é que na alteração de 2008, feita pelo Decreto-Lei 226/2008 de 20 de Novembro, foi alterado o Estatuto da Câmara dos Solicitadores e introduzido o seu art. 93º nº1 que diz o seguinte: Artigo 93.º

93º

1 — Podem requerer a inscrição no estágio [de Solicitadoria]:

a) Os titulares de licenciatura em Direito, que não
estejam inscritos na Ordem dos Advogados, e os que
possuam licenciatura em Solicitadoria, ambos com
diploma reconhecido, sem prejuízo da realização de
provas, nos termos do regulamento de inscrição;

Recapitulando, o legislador esqueceu-se de alterar os requisitos de acesso ao estágio de advocacia no EOA apesar de também o ter alterado, mas alterou o Estatuto da Câmara dos Solicitadores reconhecendo implicitamente que basta uma licenciatura em Direito para se estar inscrito na Ordem.
Dir-me-ás que também aí o legislador se referia a uma licenciatura pré-Bolonha e que apenas se referia aos licenciados pré-Bolonha já inscritos na Ordem dos Advogados. Mas esta alteração é de 2008, 2 anos depois de Bolonha ter entrado em vigor e menos de um ano antes de terem surgido os primeiros licenciados de Bolonha. Achas mesmo que o legislador se esqueceu de distinguir? Ou poderá ser que optou por equiparar? Conheces os velhos brocardos (muitas vezes falíveis, é certo) "ubi lex non distinguit, nec nos distinguire debemus" e "ubi lex voluit dixit, ubi noluit tacuit"?

Portanto, tu recorres ao art. 9º nº1 C.C. que diz que para a interpretação é necessário "reconstituir, a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta [...] as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada."
Quer isto dizer que nos temos de colocar na pele do legislador de 2005, o qual estava a pensar nos licenciados de 5 anos e nunca pensou sequer na futura existência de licenciados de Bolonha?Isto apesar de Portugal ter assinado a Declaração de Bolonha logo a 19 de Junho de 1999?
Temos ainda de ignorar as duas alterações subsequentes ao EOA (necessariamente) por parte do legislador e entender que este se esqueceu de alterar o referido art. 187º do EOA? Mas isso não viola o disposto no art. 9º nº3 CC, quando este diz que "Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados"?

Em suma, interpretas restritivamente a norma do art.187º EOA recorrendo ao elemento histórico e ao espírito da lei, apesar de, à data da feitura da lei já estarem previstas as consequências que dizes não terem sido consideradas pelo legislador. Apesar de o legislador ter alterado o EOA sem mexer nos requisitos de acesso ao estágio e de ter, de certo modo, corroborado a suficiência de uma licenciatura em Direito para aceder à Ordem dos Advogados através da alteração do art. 93º do Estatuto da Câmara dos Solicitadores, entendes que mesmo assim o "coitadinho" não se soube explicar e propões-te a dar tu uma interpretação definitiva e vinculativa da norma, regulamentando-a no sentido oposto. Mas mesmo que a lei te permitisse dar essa interpretação (coisa que nunca seria permitida), a CRP proibir-to-ia no seu art. 112º nº5.

Temos de combinar um café,

Abraço,

O Legislador Ordinário

P.S. - A Sofia Paixão manda cumprimentos

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